O mercado imobiliário, por envolver contratos de longo prazo e altos valores, sempre trouxe desafios para quem, por algum motivo, precisa desistir da compra de um imóvel.
Antes de 2018, não havia lei específica para regular o distrato: cabia à jurisprudência definir os limites. Na prática, os tribunais entendiam que a incorporadora podia reter entre 10% e 25% dos valores pagos, devolvendo o restante ao consumidor; um critério que buscava equilíbrio.
Em 2018, surgiu a Lei dos Distratos (Lei 13.786/2018), que trouxe regras mais detalhadas. No entanto, endureceu as retenções: passou a permitir até 50% de retenção quando o empreendimento estivesse submetido ao patrimônio de afetação (como nos apartamentos na planta) e 10% sobre o valor total do contrato nos loteamentos.
Essa nova fórmula, aplicada de forma literal, gerou distorções: em muitos casos, o consumidor, mesmo já tendo pago parcelas significativas, acabava recebendo de volta uma quantia irrisória ou quase nada, onerando de forma desproporcional quem já estava em dificuldade financeira. Enquanto isso, o imóvel retornava ao estoque da empresa, que podia revendê-lo, obtendo novo lucro sobre o mesmo bem, o que acentuava a sensação de injustiça.
Agora, em 2025, uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem corrigir esse desequilíbrio. O Tribunal reafirmou a prevalência do Código de Defesa do Consumidor (CDC) sobre cláusulas abusivas da lei, limitando a retenção a 25% do que foi efetivamente pago, salvo situações específicas como taxa de fruição. A decisão impede que construtoras e loteadoras se beneficiem de interpretações que levavam o consumidor a perder praticamente todo o investimento.
Este artigo explica, de forma didática, os principais pontos dessa decisão do STJ, traduzindo seus efeitos práticos e mostrando como ela representa um avanço na proteção dos direitos do consumidor.
Antes do STJ: a soma de descontos que tornava o distrato quase confiscatório

Antes da recente intervenção do STJ, a rescisão de contratos de compra e venda de imóveis, especialmente em loteamentos, era marcada por forte desequilíbrio. A Lei nº 13.786/2018, conhecida como Lei do Distrato, embora tenha trazido regras específicas, abriu espaço para interpretações que penalizavam demais o consumidor.
O artigo 32-A da Lei 6.766/1979, incluído pela Lei dos Distratos, passou a listar uma série de valores que poderiam ser descontados na devolução:
- cláusula penal ou taxa administrativa de até 10% sobre o valor total do contrato;
- encargos moratórios;
- tributos;
- corretagem integrada ao preço;
- e a eventual taxa de fruição.
Na prática, a soma desses descontos muitas vezes superava em muito o que seria razoável, chegando a consumir quase todo o montante pago pelo comprador. Isso ocorria, por exemplo, porque a multa de 10% era aplicada sobre o valor total do contrato, e não sobre o que já havia sido pago.
O STJ interveio para corrigir esse desequilíbrio. O Tribunal reconheceu que essa forma de cálculo podia levar a uma retenção superior a 25% do que foi efetivamente pago, configurando abusividade nas relações de consumo.
Por isso, decidiu que, nas relações de consumo, a soma de todos esses descontos deve respeitar o teto de 25% do que foi pago (exceto a fruição, que é tratada separadamente).
Exemplo prático:
O contrato tinha valor total de R$ 400.000,00 e o comprador havia pago R$ 80.000,00.
A construtora aplicou 10% sobre o valor do contrato, resultando em R$ 40.000,00 de multa.
Mas essa multa de R$ 40.000,00 é maior do que 25% do que foi pago (25% de R$ 80.000,00 = R$ 20.000,00).
Nessa situação, prevalece o entendimento do STJ e o CDC: a construtora só pode reter até R$ 20.000,00, devendo devolver R$ 60.000,00 ao consumidor.
O Caso em Questão: REsp 2.106.548 – SP

A decisão analisada decorre do Recurso Especial nº 2.106.548 – SP, relatado pela Ministra Nancy Andrighi. O caso envolveu o consumidor Wagner Consani Filho, que, diante de dificuldades para continuar pagando as parcelas, decidiu rescindir voluntariamente seu contrato de promessa de compra e venda de lote em um empreendimento da Momentum Empreendimentos Imobiliários Ltda.
O ponto central do litígio estava em definir quais regras deveriam prevalecer na devolução dos valores pagos: as da Lei do Distrato (Lei nº 13.786/2018) que, em tese, permitiam retenções elevadas; ou os princípios protetivos do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que buscam limitar cláusulas abusivas e preservar o equilíbrio contratual.
Embora o distrato tenha sido motivado pela iniciativa do consumidor, a controvérsia girou em torno de quanto a construtora poderia reter e qual deveria ser a forma de devolução das parcelas pagas, especialmente considerando que os contratos haviam sido assinados já sob a vigência da Lei do Distrato.
Os Pilares da Decisão do STJ: Proteção ao Consumidor Ponto a Ponto

O STJ, ao analisar o recurso, consolidou entendimentos que reforçam a posição do consumidor, mesmo diante da Lei do Distrato. A seguir, detalhamos os pontos mais relevantes da decisão, com exemplos práticos para facilitar a compreensão.
1. Prevalência do Código de Defesa do Consumidor (CDC)
O Superior Tribunal de Justiça reafirmou que, quando houver conflito entre a Lei do Distrato (Lei nº 13.786/2018) e o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), prevalece o CDC.
Isso porque o CDC é uma lei de caráter principiológico e protetivo, voltada especificamente para proteger a parte mais vulnerável da relação de consumo, o comprador pessoa física, que adquire o imóvel para uso próprio. Já a Lei do Distrato tem caráter mais contratual e setorial, aplicável a negócios imobiliários em geral, mas sem a mesma proteção ao consumidor.
Essa prevalência é essencial para evitar que cláusulas contratuais amparadas pela Lei do Distrato resultem em retenções desproporcionais e prejudiquem o comprador, que, na maioria das vezes, já enfrenta dificuldades financeiras para manter o contrato.
2. Limite de Retenção: até 25% do que foi pago
O STJ firmou que é abusiva qualquer retenção que resulte na perda substancial do que o consumidor pagou, mesmo quando o distrato parte da iniciativa do comprador. Assim, a empresa não pode reter mais de 25% dos valores efetivamente pagos.
Esse percentual tem dupla função:
- Indenizatória – cobre despesas razoáveis da vendedora, como publicidade, corretagem e custos administrativos;
- Cominatória – funciona como uma penalidade para desestimular o descumprimento contratual.
O objetivo é manter o equilíbrio da relação: o consumidor não perde tudo o que pagou e a empresa é compensada pelos gastos que teve.
Exemplo prático:
João pagou R$ 80 mil na compra de um lote de R$ 400 mil.
Ao desistir do negócio, a construtora cobrou 10% sobre o valor total do contrato (R$ 40 mil), além de taxas extras, deixando João com quase nada a receber.
Pelo entendimento do STJ, com base no CDC, a retenção não pode ultrapassar 25% do que foi pago — ou seja, no máximo R$ 20 mil. João teria direito à devolução de R$ 60 mil, evitando a perda desproporcional.
3. Taxa de Fruição: quando é devida e quando não se aplica
O STJ esclareceu que a taxa de fruição é uma indenização pelo uso do imóvel enquanto o comprador esteve na posse do bem antes do distrato.
Por ter natureza diferente da retenção, ela não entra no limite de 25%, serve para compensar o benefício econômico que o comprador obteve (ou poderia ter obtido) durante a posse do imóvel.
Contudo, a cobrança só é permitida se houver uso real e mensurável do bem.
Se o contrato já prevê uma multa moratória equivalente ao aluguel mensal, a fruição não pode ser cobrada novamente, para evitar cobrança em duplicidade (bis in idem).
Fruição indevida em lote não edificado
O STJ foi categórico: não existe taxa de fruição quando se trata de lote não edificado, ou seja, um terreno vazio, sem construção ou uso efetivo.
Nesses casos, o comprador não obteve qualquer vantagem econômica, como moradia ou rendimento com aluguel, e tampouco o vendedor sofreu prejuízo pelo fato de o terreno ter permanecido vazio.
Permitir a cobrança de fruição nessa situação seria injusto, pois o consumidor pagaria por algo que nunca utilizou ou que não lhe trouxe qualquer benefício.
Importante destacar que esse entendimento não é novo: o STJ já vinha decidindo nesse sentido há anos, e a presente decisão apenas reforça essa jurisprudência consolidada, coibindo tentativas de construtoras de insistirem na cobrança de fruição sobre terrenos sem uso.
Exemplo prático:
Maria comprou um lote, mas nunca construiu nada nem ocupou o terreno. Ao pedir o distrato, não pode ser cobrada taxa de fruição, já que não houve qualquer uso nem benefício econômico do bem. A construtora poderá reter apenas até 25% dos valores pagos.
4. Restituição imediata dos valores pagos
O STJ reafirmou que a devolução dos valores pagos pelo consumidor deve ocorrer de forma imediata, e não ao final da obra nem de forma parcelada, como previa o §1º do art. 32-A da Lei do Distrato.
A Corte considerou que parcelar ou adiar a devolução é prática abusiva, por violar os arts. 39 e 51 do CDC, e manteve a aplicação da Súmula 543 do STJ, que dispõe:
“Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador — integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento.”
Essa orientação assegura que o consumidor não seja penalizado financeiramente pela demora na devolução, garantindo liquidez imediata mesmo quando o distrato ocorre por sua iniciativa, respeitando apenas a retenção legal de até 25%.
Exemplo prático:
Carlos desistiu da compra de um lote e tinha direito à devolução de 75% do que pagou. A loteadora informou que só devolveria o valor em 12 parcelas, a serem pagas 180 dias após a conclusão da obra.
Segundo a Súmula 543 do STJ, essa condição é ilegal: Carlos tem direito de receber os 75% devidos de uma só vez, imediatamente após o distrato ou a decisão judicial, sem precisar esperar o término da obra ou aceitar parcelamentos.
Conclusão: Reafirmação da Justiça e do Equilíbrio nas Relações de Consumo

A decisão do STJ no REsp 2.106.548 – SP reforça a importância de manter o consumidor protegido em um dos cenários mais delicados do mercado imobiliário: o distrato contratual.
Ao reafirmar a prevalência do Código de Defesa do Consumidor, limitar a retenção a 25% dos valores efetivamente pagos, vedar a cobrança de taxa de fruição em lotes não edificados e garantir a restituição imediata das parcelas, o Tribunal Superior consolidou parâmetros claros que equilibram as relações contratuais e coíbem práticas abusivas.
Essa decisão não cria um novo direito, mas fortalece a jurisprudência já consolidada do STJ, trazendo segurança jurídica para compradores e freando cláusulas que penalizavam excessivamente quem já enfrentava dificuldades financeiras.
Para o consumidor, representa tranquilidade e respaldo legal para exigir a devolução justa do que pagou, evitando perdas desproporcionais. Para o mercado, sinaliza a necessidade de contratos mais equilibrados, que respeitem a boa-fé e a transparência.
Em síntese, a decisão evidencia que, mesmo diante de leis setoriais como a Lei do Distrato, a proteção do elo mais vulnerável da relação permanece como um pilar inegociável do ordenamento jurídico brasileiro.